A pandemia deixou muitos impactos nas vidas dos sobreviventes da covid-19 e dos familiares que perderam alguém para a doença. Para essas pessoas, o pesadelo ainda não passou. No caso da enfermeira Heloísa Garcia Claro Fernandes, por exemplo, a doença assombrou durante todo um ano.
Heloísa contraiu covid-19 três vezes em 2022. Na primeira, estava no sétimo mês de gestação de seu terceiro filho. “Frequentava muitos serviços de saúde por conta do pré-natal. Provavelmente peguei enquanto fazia ultrassom”. Por estar no grupo de risco, ela teve muito medo.
“No Brasil teve uma gravidade maior de letalidade entre as gestantes. Obviamente, não foi fácil quando eu descobri que estava com covid. Tenho certeza que se eu não tivesse me vacinado teria sido muito pior, porque a gente vê os dados. A vacina impediu os casos graves”.
Ela conta que, além da baixa saturação, teve outros sintomas mais pesados de covid-19 na primeira vez que contraiu no ano passado. “Passei a gravidez inteira evitando sair, de estar junto da família, pois era do grupo de risco. Então me privei de várias coisas e acabei pegando [covid-19] quase no final da gestação. E eu tenho sinusite e rinite alérgica, o que ficou bem ‘atacado’. Eu fiquei praticamente de janeiro até o final do ano passado com tosse o tempo todo”.
A enfermeira, que também é professora de saúde mental na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), relembra também que os conhecimentos de sua profissão a ajudaram durante uma viagem. “A gente tinha ido a passeio numa cidade pequena do litoral, mas tive os primeiros sintomas ainda em São Paulo. Quando estava lá [no litoral], fiz o teste no segundo dia, mas não tinha como ir para o pronto-socorro ali, afastada de tudo. Como eu sou enfermeira, pedi ajuda para os meus amigos que são profissionais da saúde, pois sei que nem toda medicação pode ser tomada na gestação. Então fiz a consulta por telefone, foi o que me ajudou, passar com um profissional para me orientar”.
Além de Heloísa, a família toda, o marido e os dois filhos, testou positivo. “Depois ainda tive [covid] em junho, quando o meu bebê era pequenininho, e também em novembro, mesmo depois de tomar todas as doses da vacina. Se eu tive alteração de saturação quando estava grávida, mesmo vacinada, imagina se eu não tivesse tomado?”.
Sequelas
O presidente do Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (CES-RS), Claudio Augustim, de 66 anos, já defendia protocolos mais efetivos de proteção à covid-19 quando ele mesmo, em dezembro de 2020, pegou o vírus, mesmo tomando todas as precauções. Entrou no hospital com pneumonia bacteriana e dias depois foi diagnosticado com o coronavírus. A partir de então, sua situação de saúde só piorou.
“Fiquei muitas semanas entubado. Peguei 20 pneumonias no hospital. Acordei da sedação em fevereiro, mas só me dei conta que estava vivo, que tinha consciência, em abril. Vim para casa em agosto [de 2021] e só me alimentava por sonda, nem água podia tomar”, relata.
O período no hospital foi pesado, ele conta. “Tomei muita morfina para a dor. Como tive câncer no pulmão, só tenho parte do pulmão esquerdo, com isso eu não podia virar para o lado esquerdo, e com as pneumonias, meu pulmão direito também estava comprometido”. Muitas vezes, ele pensou que ia morrer. “Minha filha dizia: pai, você já passou por tanta coisa e chegou até aqui, não é agora que vai morrer. E eu seguia vivo!”.
“Mesmo assim, depois de todos as vacinas, peguei novamente a covid”, relembra. Em novembro do ano passado, foi infectado mais uma vez, em casa, apesar de todos os protocolos continuarem firmes na residência: quem o visita precisa estar de máscara, lavar as mãos e passar álcool, além de manter a distância mínima.
Para Claudio, as informações oficiais com os números dos recuperados da covid não significam exatamente um dado positivo. “Recuperada é aquela pessoa que não está mais transmitindo a doença. Mas tem muitas sequelas que atingem as pessoas. Muita gente, por exemplo, desenvolveu diabetes depois, problemas mentais e outras doenças. São as sequelas da covid. Até em pessoas que tiveram a doença, mas ficaram assintomáticas, elas apareceram”.
Ele mantém as atividades do conselho ainda de casa. Faz tudo de forma virtual, não participa de mais nada presencialmente. Um das propostas foi o Comitê Estadual em Defesa das Vítimas da covid, que trabalha nas reivindicações e ampliação dos recursos públicos para atendimento às vítimas com sequelas da doença. O comitê entrou com uma ação, em 2021, junto aos deputados, para aprovar uma emenda garantindo a aplicação de 12% de arrecadação de impostos na área da saúde, como previsto na Constituição Federal.
“O Estado deve destinar 12% para a área da saúde pública, mas não estava destinando o percentual. A emenda não foi aprovada. Este ano, vamos tentar novamente, para que esses recursos sejam usados na recuperação das pessoas com sequelas da covid e para a atenção básica, o que é muito importante. Porque, se há atenção e prevenção, as pessoas não adoecem tanto”, destaca.
Claudio conversa bem, ainda que tenha uma tosse entre as falas, mas já precisou fazer sessões de fonoaudiologia quase diárias. Hoje, faz fisioterapia cinco vezes por semana, acompanhamento psicológico e o serviço de enfermagem é 24 horas. A filha, que é médica neurologista, o visita com frequência para avaliá-lo também e ele segue acompanhado pelo médico que o assiste há 20 anos, onde mora, em Porto Alegre (RS).
“Até hoje eu não consigo sair de casa sozinho. A minha mão direita está caída, sem força, e com isso eu não consigo escrever, pois sou destro. Nem sei se conseguirei um dia”, lamenta. Outra sequela, ele diz, são as crises de ansiedade. “Tem hora que não consigo respirar, é mais uma sequela bastante ruim”, completa Claudio.
Legados perdidos
Legado pode ser definido como algo que fica para a posteridade após o fim de um ciclo, de uma vida, sejam obras materiais ou não. Ou seja, como alguém será lembrado pela história, amigos e familiares. Uma dessas vítimas da covid-19 deixou um legado de estudos sobre os tubarões na costa pernambucana.
O professor e pesquisador Fábio Hissa Vieira Hazin morreu em 2021, vítima de covid-19, em Recife, aos 57 anos. Hazin era referência em pesquisa sobre a megafauna marinha. Graduado em Engenharia de Pesca pela Universidade Federal Rural do Pernambuco (UFRPE), o professor possuía mestrado e doutorado em Marine Science and Technology/ Fisheries Oceanography na Tokyo University of Marine Science and Technology; e pós-doutorado em Avaliação de Estoques de Recursos Pesqueiros Pelágicos Migratórios no Southeast Fisheries Sience Center, em Miami (EUA).
Também obteve especialização em Direito Internacional do Mar, pela Rhodes Academy (Center for Oceans Law and Policy/ University of Virginia School of Law). Em 2015, exerceu o cargo de Secretário Nacional de Pesca do Ministério da Pesca e Aquicultura e, interinamente, de Ministro de Estado da Pesca e da Aquicultura.
Sua atuação principal era em Oceanografia Pesqueira e Engenharia de Pesca, com ênfase em grandes peixes pelágicos (atuns, agulhões, tubarões), atuando principalmente em biologia reprodutiva, distribuição, comportamento, migração; Gestão Pesqueira e Direito Internacional do Mar e exerceu diversos cargos relevantes no Brasil e no mundo.
Hazin foi professor associado da UFRPE, no Curso de Engenharia de Pesca e no Programa de Pós-graduação em Recursos Pesqueiros e Aquicultura, e na UFPE, no Programa de Pós-graduação em Oceanografia. Até adoecer, era coordenador Geral Científico do Programa Arquipélago de São Pedro e São Paulo.
O currículo é ainda mais extenso, com diversas participações em palestras, comitês e comissões. Mas, sua atuação como professor era singular, conta um de seus ex-alunos e atual professor e pesquisador do Departamento de Pesca e Aquicultura da UFRPE, Paulo Oliveira. “Ele era incrível em sala de aula! Extremamente didático, usava exemplos e analogias simples para explicar diversos processos oceanográficos. As aulas ministradas por ele eram sempre riquíssimas e repletas de informações, tanto que era muito comum os alunos gravarem para não perder nenhuma informação”.
Na opinião do ex-aluno e colega de profissão, o oceanógrafo foi um dos legados perdidos para a covid. “Infelizmente. Mesmo sendo muito cuidadoso, o professor usava sempre duas máscaras, mesmo assim foi infectado, testou positivo cinco dias antes da vacina ser liberada para a sua faixa etária e ele estava consciente disso”, lamentou.
Para Paulo, a genialidade de Hazin e sua dedicação incessante à pesquisa geraram contribuições preciosíssimas para a ciência e gestão marinha no Brasil e no mundo. Ele acredita que o trabalho do pesquisador fortaleceu a ciência e abriu caminhos para a pesquisa brasileira no cenário mundial. “Seu comprometimento com a transmissão deste conhecimento e capacidade extraordinária de transbordar o amor pela ciência em sua oratória encantou e inspirou seus alunos e a todos que o ouviam”.
Hazin também ficou conhecido pelo trabalho de pesquisa sobre a presença de tubarões no litoral pernambucano e foi presidente do Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit) entre 2004 e 2012.
“No litoral pernambucano as pesquisas foram desenvolvidas durante duas décadas, de 1994 até 2014. Quando as pesquisas começaram não sabíamos nem quais eram as espécies envolvidas. Hoje, sabemos confirmar